quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

sábado, 12 de dezembro de 2009

O JOGO




Éramos quatro, todos devidamente acomodados. A mesa redonda exibia o feltro novinho, roxo. Estávamos prontos para a disputa. Melhor de 301, essa era nossa epopéia na Catchamba, jogo milenar que utiliza todas as cartas do baralho oficial da Anti-República de Azmhir. A sala de jogo, posicionada estrategicamente no alto do castelo do poderoso rei, era sombria, fria, nebulosa. Começa nossa disputa medieval.
Contrariando a velha máxima, o prêmio maior era pura libertinagem. Katrina, do alto dos seus 182cm de altura, estava pronta para servir o vencedor. Sete noites de amor e luxúria na suíte master do castelo. Contando dessa forma, a peleja até soa como um playground, mas não era. Se Katrina, uma loira tipo Sharon Stone - no auge da forma - era o grande prêmio da sabatina, os perdedores amargariam as prendas do temido rei ditador da Anti-República de Azmhir. Nosso comandante é extremamente sádico. Correm, pela vila baixa, diversas histórias de tortura e maus tratos, todas protagonizadas pelo monarca. Era um desafio de vida ou morte.
Ao meu lado direito havia um imigrante oriental. Uma figura franzina, esquelética, branco como algodão que respondia pelo nome de Ping Shan III. Ao lado de Ping Shan, quase de frente para mim, o carrasco do reino. Sem pronunciar uma palavra sequer, o gigantesco homem de capuz preto não tinha nome, ele era o carrasco do reino e ponto, uma figura sem identidade. Do meu lado esquerdo, um cidadão comum, provavelmente descendente do clero dos eromitas. Lembro-me muito bem que a cada rodada o homem comum, que atendia pelo nome de Alexandrino, exalava um cheiro forte, um odor fétido de enxofre. Bastava uma nova rodada da temida Catchamba para Alexandrino abrir seu poros.

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Eu sei que antes de prosseguir com a história, seria de bom grado explicar como funcionam as regras desse temido jogo. Mas, como todo embate que utiliza baralhos reais, a Catchamba é – provavelmente – o carteado mais complexo de todos os reinos.

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Para fiscalizar a partida o próprio rei fazia as honras, um crupiê real, sádico. Seus olhos corriam todos os vãos do castelo enquanto distribuía as cartas com grande agilidade. Há quem diga que o temido Azmhir não era viciado na jogatina, mas sim nas prendas que aplicava aos perdedores. Seu castelo, incrustado no alto das montanhas, era o cenário perfeito para vencer ou morrer. E lá estava eu... Assim que fui anunciado pelos clarins lembrei que na parte baixa do reino corriam boatos terríveis sobre essa partida que eu estava prestes a protagonizar, especulava-se que o último colocado seria executado em praça pública. Mas logo que vi o carrasco real estranhei o que poderia vir a ser uma auto-execução, caso o temido gigante de capuz preto perdesse de todos. Fiquei intrigado.
Os clarins tocam, as cartas são distribuídas. Primeira rodada. Seguindo a ordem anti-horária, saquei meu valete de ouros. Heitor, o príncipe de Tróia era meu trunfo. Ping Shan III cobriu minha carta com um demolidor dois de paus. Em seguida o carrasco nos soterrou com um rei de ouros. Aquela figura de Julio César com um machado na mão estampada na carta do gigante queria nos dizer alguma coisa. Todos cruzaram olhares. De repente o homem comum sacou um três de copas e acabou com aquela rodada: Catchamba! Gritou apressadamente.
1 X 0 X 0 X 0.
Azmhir sorriu marotamente, com o canto da boca. Era apenas o começo, muita coisa ainda viria pela frente.

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4 horas e 52 minutos após a primeira rodada, a mesa estava tecnicamente empatada: 43 X 43 X 43 X 44 - um mísero ponto dava vantagem ao homem do baixo clero – quando o rei sentenciou:
- “Como todos sabem, o vencedor terá direito a uma semana de prazer com Katrina. Serão sete dias e sete noites com a mais bela serva real. Mas agora, como vocês não sabem, vou anunciar o prêmio para o segundo colocado...”
Os clarins sopraram a todo vapor.
- “Um Kindle com 3,3 gigas de memória!”
Confesso que prefiro a semana de luxúria, mas fiquei aliviado ao saber que o segundo colocado não seria punido seriamente. Àquela altura do campeonato nós jogadores temíamos que o rei anunciasse alguma barbárie.
Nos entre olhamos... Os clarins soaram novamente e o rei, sem fazer qualquer menção ao que estava reservado para o terceiro colocado, ordenou que voltássemos ao jogo. Antes de dar as cartas, Azmhir sussurrou em tom debochado:
- “Só anunciarei o que reservo para o terceiro colocado quando um de vocês alcançarem 100 pontos.” O rei era terrível, sabia como aplicar técnicas de tortura mental como ninguém.
Jogamos por mais três horas e meia. O carrasco tremia de cansaço, Ping Chang III estava ainda mais pálido do que nunca. Eu suava como um porco a caminho do abate enquanto o homem comum não demonstrava nenhuma reação.
100 X 99 X 98 X 97! Frio e calculista, o representante do baixo clero seguia a frente do placar. A cada rodada, fazia questão de exibir total domínio sobre as cartas. Não parecia humano.
Antes de anunciar o que estava reservado para o terceiro colocado, o Azmhir chamou Katrina. Luzes piscaram, máquina de fumaça real a todo vapor.
- “Que entre o prêmio máximo!”
A porta do salão de jogos real se abriu e Katrina apareceu lentamente. Ela era perfeita. Com olhos rasgados e andar de gazela, nossa musa adentrou o salão coberta por um minúsculo baby dool transparente. Mais uma vez nossas reações vieram à tona. Enquanto o japa tremia feito vara verde, o carrasco lambia a lâmina de seu machado numa cena obscena e grotesca. Confesso que perdi o fôlego quando fitei aquela deusa. Katrina era demais, sua bunda parecia ter sido desenhada com um compasso suíço... Mas o homem comum não demonstrou reação. Seus olhos estavam fixos na mesa, nas cartas, no jogo. Katrina se foi ao som dos clarins e o rei profanou:
- “O terceiro colocado será expulso do reino e sua família, incluindo 3 gerações futuras, serão meus servos!”
Azmhir mostrara suas cartas justificando sua fama. O que poderia ser pior que isso? O que o reino reservava para o último colocado? Por que me meti nessa roubada real?

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12 horas de jogo. Pausa para uma mijada. Estávamos perto do placar final.
Saí da mesa em direção ao banheiro real com os bagos nas mãos. Afinal de contas, estava em último lugar. Enquanto o homem comum do baixo clero seguia na ponta, o carrasco mantinha seu posto de segundo colocado. Ping Chang III teria mais algumas rodadas para livrar sua família da sentença real enquanto eu só pensava no que poderia me acontecer caso não reagisse ao placar desfavorável. Balancei e voltei à mesa. O quadro negro com moldura de ouro exibia o trágico: 294 X 292 X 198 X 149. Eu despontava na lanterna, longe, muito distante do terceiro colocado. Recorri à lei da probabilidade para calcular quais seriam minhas chances de recuperação. Maldita matemática, no máximo conseguiria arruinar minha família.
O jogo prosseguiu.
Alexandrino continuava na ponta enquanto o carrasco real sonhava com seu Kindle de 3,3 gigas. Ping Shan III e eu travávamos um embate terrível.
Viramos 2 noites sobre o feltro roxo. O Rei, astuto como uma ave de rapina, era o único que tinha momentos de descanso. Sempre que deixava a mesa para repousar, deixava o ministro da guerra para supervisionar a partida.

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300 X 274 X 261 X 239.
Era o fim. Meus 239 pontos contra os 300 de Alexandrino me sepultavam.
Os clarins soaram anunciando o match point. As luzes do castelo ficaram miúdas enquanto as máquinas de fumaça, ligadas em 220 volts, trabalhavam sem parar. Nesse momento tive um flash back perturbador. Lembrei da minha infância pobre e divertida na vila baixa. Lembrei do meu primeiro amor, meu primeiro beijo, minha primeira transa. Lembrei das juras de amor que fiz a minha primeira paixão verdadeira, lembrei da primeira nota baixa no boletim, lembrei do meu pai trazendo lenha no inverno, do cheiro do bolo da maça da minha mãe. Lembrei do dia que fumei meu primeiro baseado, lembrei das ressacas intermináveis de rum, lembrei do mergulho na extinta lagoa azul... Lembranças tenras e difíceis. Um flash back típico de quem está no fim da linha.
Enquanto meu flash back corria décadas em velocidade máxima o homem simples gritou:
- “CATCHAMBA!!!”
Alexandrino, com os olhos esbugalhados e mãos ao pau, exibia um sorriso desconcertante. Era o fim daquele jogo insano.
Os clarins soaram, Katrina entrou na sala de jogos reais com seu minúsculo baby dool transparente e levou Alexandrino pela mão. O carrasco foi presenteado com seu Kindle de 3,3 gigas e Ping Shan III foi levado à masmorra.
Fiquei sozinho na sala escura. Eu, Azmhir e meia dúzia de guardas reais. O silêncio tomou conta do ambiente durante uns 30 segundos até que o rei se pronunciasse em altos brados:
- “Você, perdedor máximo, faz idéia do que reservo para os piores?”
Ajoelhado aos seu pés, relutei até dizer:
- “Não meu senhor...”
O rei calmamente fez um gesto para o ministro da guerra. Dois guardas me tomaram pelos braços enquanto as luzes se apagaram.

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